quinta-feira, 6 de março de 2025

Desmistificando: Arrebatamento

"Estejam sempre prontos para dar a razão de sua esperança a todo aquele que a pede a vocês, mas com bons modos, com respeito e mantendo a consciência limpa." — I Pedro 3:15-16

 Arrebatamento.

 Essa é uma palavra muito conhecida no meio evangélico, e que se tornou muito conhecida do público geral, ao menos em minha experiência. Devido à guinada neopentecostal que o Brasil tem dado nos últimos anos e a obras como Deixados Para Trás (por sinal, o coautor desses livros é pai do diretor da série The Chosen, que anda fazendo sucesso por aí. Só dizendo), a doutrina do arrebatamento se tornou, para muitos não-cristãos, uma doutrina essencial do cristianismo. A ideia de que, um dia, os "crentes verdadeiros" serão levados aos céus e os pecadores serão deixados na Terra para sofrerem. O intuito dessa postagem é desmentir isso.

 A começar, a doutrina do arrebatamento é abismalmente recente, levando em conta o fato do cristianismo ter quase 2000 anos de existência. Suas origens podem ser traçadas para os Estados Unidos do início do Século XIX, com o pregador John Nelson Darby (1800-1882) como seu primeiro grande proponente. Duas passagens, ambas do Novo Testamento, foram e são usadas extensivamente por proponentes dessa ideia para defendê-la. Como parte dessa postagem, analisaremos ambas e refutaremos a ideia de que elas se referem a um arrebatamento dos fiéis dessa Terra.

 A mais conhecida vem da Primeira Carta de São Paulo aos Tessalonicenses, onde I Tessalonicenses 4:15-18 diz o seguinte:

 "Eis o que declaramos a vocês, baseando-nos na palavra do Senhor: nós, que ainda estaremos vivos por ocasião da vinda do Senhor, não teremos nenhuma vantagem sobre aqueles que já tiverem morrido. De fato, a uma ordem, à voz do arcanjo e ao som da trombeta divina, o próprio Senhor descerá do céu. Então os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; depois nós, os vivos, que estivermos ainda na terra, seremos arrebatados junto com eles para as nuvens, ao encontro do Senhor nos ares. E então estaremos para sempre com o Senhor. Consolem-se, pois, uns aos outros com essas palavras."

"Mas, Red", alguns podem falar ", como você pode refutar isso? O texto até usa o termo 'arrebatados'!" Sim, verdade, mas não é isso o que Paulo quis dizer no fatídico dia em que escreveu à igreja de Tessalônica, 1970 anos atrás. Usando da florida linguagem que permeia seus textos, o apóstolo pensava em outra imagem ao escrever essa cena da Segunda Vinda de Cristo (que, de fato, é algo fundamental para o cristianismo). Ele imaginou o evento do imperador romano vindo a uma cidade e, no meio do caminho, sendo recebido por enviados daquela cidade, que o escoltavam até lá. Nas palavras do bispo anglicano N. T. Wright:

 "Paulo evoca imagens de um imperador visitando uma colônia ou província. Os cidadãos saem para encontrá-lo no campo e depois o escoltam até a cidade.  A imagem de Paulo do povo 'indo de encontro ao Senhor nos ares' deve ser lida com a suposição de que o povo se voltará imediatamente e levará o Senhor de volta ao mundo recém reformado. As metáforas mistas de Paulo sobre o toque de trombetas e o fato de os vivos serem arrebatados para o céu para encontrar o Senhor não devem ser entendidas como verdade literal, como sugere a série Deixados para Trás, mas como uma descrição vívida da grande transformação do mundo atual, da qual ele fala em outro lugar."

 A segunda passagem erroneamente usada para defender o arrebatamento (e, na minha opinião, a mais engraçada delas) é Mateus 24:37-42, que diz o seguinte:

 "A vinda do Filho do Homem será como no tempo de Noé. Porque, nos dias antes do dilúvio todos comiam e bebiam, casavam-se e davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca. E eles nada perceberam, até que veio o dilúvio, e arrastou a todos. Assim acontecerá também na vinda do Filho do Homem. Dois homens estarão trabalhando no campo: um será levado, e o outro será deixado. Duas mulheres estarão moendo no moinho: uma será levada, a outra será deixada. Portanto, fiquem vigiando! Porque vocês não sabem em que dia virá o Senhor de vocês."

 A lógica dos evangélicos que usam essa passagem é que as pessoas levadas nesse contexto são os cristãos, e as deixadas são os pecadores. Mas, na verdade, é o contrário.

 Reparem que Jesus compara a sua Segunda Vinda com a narrativa do dilúvio de Noé. Os maus foram levados pelas águas do dilúvio e apenas Noé e sua família foram deixados para trás. As pessoas sendo levadas, nesse contexto, são os pecadores, e os que são deixados para trás são os fiéis. Você quer ser deixado para trás. O evangélico que usa essa passagem para defender o arrebatamento se coloca entre os condenados, e ainda o faz com um sorriso no rosto. É isso que chamam de "ato falho"?

 A imagem dos condenados sendo "jogados" e "lançados" fora é muito recorrente nos discursos de Jesus nos Evangelhos. Alguns exemplos:

 "O Reino do Céu é ainda como uma rede lançada ao mar. Ela apanha peixes de todo o tipo. Quando está cheia, os pescadores puxam a rede para a praia, sentam-se e escolhem: os peixes bons vão para os cestos, os que não prestam são jogados fora. Assim acontecerá no fim dos tempos: os anjos virão para separar os homens maus dos que são bons. E lançarão os maus na fornalha de fogo. Aí eles vão chorar e ranger os dentes." — Mateus 13:47-50

 "Então haverá aí choro e ranger de dentes, quando vocês virem Abraão, Isaac e Jacó junto com todos os profetas no Reino de Deus, e vocês jogados fora." — Lucas 13:28

 "Eu sou a videira, e vocês são os ramos. Quem fica unido a mim, e eu a ele, dará muito fruto, porque sem mim vocês não podem fazer nada. Quem não fica unido a mim será jogado fora como um ramo, e secará. Esses ramos são ajuntados, jogados no fogo e queimados." — João 15:5-6

 Importante notar que não são todos os protestantes que acreditam no arrebatamento. De fato, a maioria categoricamente o rejeita, e apenas os mais puxados ao pentecostalismo o aceitam.

 Isso nos leva ao último tópico dessa postagem: a verdadeira escatologia cristã. O problema do arrebatamento é que ele transforma o Céu no destino final da vida cristã, e ele não é. Nunca foi.

 Isso pode surpreender muitos, mas o Céu é apenas o leito de repouso dos que morreram em Cristo antes de sua Segunda Vinda. Quando Cristo retornar, todos os que morreram em amizade com Deus serão ressuscitados com um corpo como seu, glorificado, para nunca mais morrerem novamente. Os cristãos que estiverem vivos nessa ocasião também serão transformados, e jamais verão a morte. Como disse o apóstolo Paulo, "O próprio Espírito assegura ao nosso espírito que somos filhos de Deus. E se somos filhos, somos também herdeiros: herdeiros de Deus, herdeiros junto com Cristo, uma vez que, tendo participado dos seus sofrimentos, também participaremos da sua glória" e ainda "Se permanecermos completamente unidos a Cristo com morte semelhante à dele, também permaneceremos com ressurreição semelhante à dele."

 "Vou dar a conhecer a vocês um mistério: nem todos morreremos, mas todos seremos transformados, num instante, num abrir e fechar de olhos, ao som da trombeta final. Sim, a trombeta tocará e os mortos ressurgirão incorruptíveis; e nós seremos transformados. De fato, é necessário que este ser corruptível seja revestido da incorruptibilidade, e que este ser mortal seja revestido da imortalidade. Portanto, quando este ser corruptível for revestido da incorruptibilidade e este ser mortal for revestido da imortalidade, então se cumprirá a palavra da Escritura: 'A morte foi engolida pela vitória. Morte, onde está a sua vitória? Morte, onde está o seu ferrão?'" — I Coríntios 15:51-55

 "Não fiquem admirados com isso, porque vai chegar a hora em que todos os mortos que estão nos túmulos ouvirão a voz do Filho, e sairão dos túmulos: aqueles que fizeram o bem, vão ressuscitar para a vida; os que praticaram o mal, vão ressuscitar para a condenação." — João 5:28-29

 Os que venceram a morte pelo poder de Deus herdarão a Terra, e viveram nela para sempre. A própria Terra será transformada, liberta de suas chagas e aflições para hospedar eternamente os filhos de Deus. Aqueles que rejeitaram a Deus e, por consequência, rejeitaram a si mesmos e à humanidade (visto que os homens são feitos à imagem de Deus) também serão ressuscitados, e serão afastados de Deus. Serão arrebatados, e os fiéis serão deixados para trás nesse mundo novo e eterno. Como foi escrito, "Não tenham medo daqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Pelo contrário, tenham medo daquele que pode arruinar a alma E o corpo na Geena de fogo!"

 "Vi, então, um novo céu e uma nova terra. O primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe. Vi também descer do céu, de junto de Deus, a Cidade Santa, uma Jerusalém nova, pronta como esposa que se enfeitou para o seu marido. Nisso, saiu do trono uma voz forte. E ouvi: 'Esta é a tenda de Deus com os homens. Ele vai morar com eles. Eles serão o seu povo e ele, o Deus-com-eles, será o seu Deus. Ele vai enxugar toda lágrima dos olhos deles, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor. Sim! As coisas antigas desapareceram!' Aquele que está sentado no trono declarou: 'Eis que faço novas todas as coisas'. E me disse ainda: Elas se realizaram. Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim. Para quem tiver sede, eu darei de graça da fonte de água viva. O vencedor receberá esta herança: eu serei o Deus dele, e ele será meu filho. Quanto aos covardes, infiéis, corruptos, assassinos, imorais, feiticeiros, idólatras, e todos os mentirosos, o lugar deles é o lago ardente de fogo e enxofre, que é a segunda morte.'" — Apocalipse 21:1-8

 Essa foi uma exploração breve do arrebatamento e seus problemas, bem como da real visão que os cristãos historicamente adotaram sobre a Segunda Vinda de Cristo. Não no Céu, mas na Terra.

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